O texto escrito por Neuza Maria Negrão, lido na ocasião da inauguração, traduz o sentimento de toda a cidade, de várias gerações, tendo como “pano fundo” o Cine São José. Vale a pena ler.
ANTES
A primeira sessão do nosso cinema
Nossa alma de brotense tem algumas tatuagens bem definidas: o rio Jacaré espremido entre as margens verdes, ora preguiçoso, ora tropeçando em suaves corredeiras, e a gente descendo de bóia, entre risos, o azul definitivo, a paz; manga verde com sal; o cheiro adocicado das flores mais simples; pindaíba de fiada, gabiroba e cajuzinho do mato; pés descalços; joelhos ralados nos pedregulhos, em joguinhos de futebol de rua; andar a cavalo no sítio, de domingo e dia santo. A Festa de Santa Cruz, com sua capelinha lá no alto, meninada acompanhando a banda rua abaixo, procissão do mastro, quentão no frio de rachar, carrossel girando rápido como o tempo, tômbola, corações aquecidos pelo correio elegante. E o Cine São José, que nos ensinou a ver a vida.
Cada filme, uma lição. Ao atravessarmos sua pesada cortina bordô, que separava a realidade do sonho, de suas poltronas de madeira nos transportávamos num tapete mágico até os países mais exóticos, vivíamos culturas as mais diversas, as mais lindas histórias de amor, sentíamos todos os sentimentos do mundo. Com os olhos estatelados na tela, íamos conhecendo o mar, tão longe de nós, o amor e o ódio, o relacionamento, nem sempre amistoso, entre os povos, a crueldade das guerras, a beleza colorida da vida.
Definia-se nosso gosto musical - quantos de nós não decidimos finalmente ter aulas de piano, emocionados com Chopin ou Mozart? Ou estudar violão e guitarra, seguindo a paixão pelos Beatles e outros ídolos da tela? Quem não tentou imitar o charme do Humphrey Bogart ao fumar e que menina não ensaiou, na frente do espelho, o andar e o olhar sedutor e enviesado da Marilyn Monroe? Esses, sim, eram os verdadeiros efeitos especiais.
Alguns temas dividiam nossas opiniões, gerando assuntos de discussão, nosso dever de casa. E como isso nos fazia crescer! Uma sensação de liberdade nos invadia, como um cavalo correndo solto no campo.
Até que um dia veio a notícia que nos deixou órfãos - o cinema exibia sua última sessão.E assim, o Palácio Encantado da Cidade permaneceu calado por longos anos.
Restaram só lembranças. Do encontro com a turma já na fila, sempre aos tropeções, perfume em excesso, jaqueta jeans novinha. O temor de não conseguir entrar nos filmes proibidos. 'Já fez 14 anos?' 'Já sim senhor'. E ao entregarmos os ingressos, nossos ares de adultos faziam sorrir o homem que fingia se deixar enganar.’ Afinal, pensava, o quê pode haver de errado em apaixonados beijos de amor?' E disparávamos para a bomboniere arredondada, de pastilhas verdes, suprir-nos de drops e bala chita.
E quantas paixões brotaram nesse mesmo recinto! Com as faces afogueadas, coração acelerado, a coragem chegava, animada pelo escurinho da sala. Mãos se entrelaçando, beijos roubados - cuidado, olha o lanterninha, ai, se meu pai souber!
Do cinema que nos moldou adultos em lágrimas disfarçadas, na escolha dos interesses, tantas vezes baseados nos filmes, nas opções reticentes, na personalidade se definindo. E nos conservou crianças em explosões de riso coletivo, com a leveza do humor do Mazzaroppi nas matinês de domingo. Ah, como o riso une as pessoas.
Com o cinema aprendemos a ter curiosidade pela vida, a desvendar mistérios e superar obstáculos, como nos episódios emocionantes do seriado semanal. E concluímos que Deus é o Diretor e nós os protagonistas do filme de nossa vida, esse delicioso presente e contínuo desafio.
Hoje o Cine São José, nossa porta do mundo, nos é devolvido. Minuciosamente restaurado, todo prosa, retoma sua função de nos enfeitiçar.
É terminantemente proibido tentar reprimir as lágrimas.
O menino da porteira continua abrindo as portas à sensibilidade, à cultura, aos sonhos, aos novos talentos dessa nossa terra.
Sejam todos bem-vindos ao Cine São José.
Brotas, 6 de março de 2009
neuza.maria.negrao@gmail.com
Nossa alma de brotense tem algumas tatuagens bem definidas: o rio Jacaré espremido entre as margens verdes, ora preguiçoso, ora tropeçando em suaves corredeiras, e a gente descendo de bóia, entre risos, o azul definitivo, a paz; manga verde com sal; o cheiro adocicado das flores mais simples; pindaíba de fiada, gabiroba e cajuzinho do mato; pés descalços; joelhos ralados nos pedregulhos, em joguinhos de futebol de rua; andar a cavalo no sítio, de domingo e dia santo. A Festa de Santa Cruz, com sua capelinha lá no alto, meninada acompanhando a banda rua abaixo, procissão do mastro, quentão no frio de rachar, carrossel girando rápido como o tempo, tômbola, corações aquecidos pelo correio elegante. E o Cine São José, que nos ensinou a ver a vida.
Cada filme, uma lição. Ao atravessarmos sua pesada cortina bordô, que separava a realidade do sonho, de suas poltronas de madeira nos transportávamos num tapete mágico até os países mais exóticos, vivíamos culturas as mais diversas, as mais lindas histórias de amor, sentíamos todos os sentimentos do mundo. Com os olhos estatelados na tela, íamos conhecendo o mar, tão longe de nós, o amor e o ódio, o relacionamento, nem sempre amistoso, entre os povos, a crueldade das guerras, a beleza colorida da vida.
Definia-se nosso gosto musical - quantos de nós não decidimos finalmente ter aulas de piano, emocionados com Chopin ou Mozart? Ou estudar violão e guitarra, seguindo a paixão pelos Beatles e outros ídolos da tela? Quem não tentou imitar o charme do Humphrey Bogart ao fumar e que menina não ensaiou, na frente do espelho, o andar e o olhar sedutor e enviesado da Marilyn Monroe? Esses, sim, eram os verdadeiros efeitos especiais.
Alguns temas dividiam nossas opiniões, gerando assuntos de discussão, nosso dever de casa. E como isso nos fazia crescer! Uma sensação de liberdade nos invadia, como um cavalo correndo solto no campo.
Até que um dia veio a notícia que nos deixou órfãos - o cinema exibia sua última sessão.E assim, o Palácio Encantado da Cidade permaneceu calado por longos anos.
Restaram só lembranças. Do encontro com a turma já na fila, sempre aos tropeções, perfume em excesso, jaqueta jeans novinha. O temor de não conseguir entrar nos filmes proibidos. 'Já fez 14 anos?' 'Já sim senhor'. E ao entregarmos os ingressos, nossos ares de adultos faziam sorrir o homem que fingia se deixar enganar.’ Afinal, pensava, o quê pode haver de errado em apaixonados beijos de amor?' E disparávamos para a bomboniere arredondada, de pastilhas verdes, suprir-nos de drops e bala chita.
E quantas paixões brotaram nesse mesmo recinto! Com as faces afogueadas, coração acelerado, a coragem chegava, animada pelo escurinho da sala. Mãos se entrelaçando, beijos roubados - cuidado, olha o lanterninha, ai, se meu pai souber!
Do cinema que nos moldou adultos em lágrimas disfarçadas, na escolha dos interesses, tantas vezes baseados nos filmes, nas opções reticentes, na personalidade se definindo. E nos conservou crianças em explosões de riso coletivo, com a leveza do humor do Mazzaroppi nas matinês de domingo. Ah, como o riso une as pessoas.
Com o cinema aprendemos a ter curiosidade pela vida, a desvendar mistérios e superar obstáculos, como nos episódios emocionantes do seriado semanal. E concluímos que Deus é o Diretor e nós os protagonistas do filme de nossa vida, esse delicioso presente e contínuo desafio.
Hoje o Cine São José, nossa porta do mundo, nos é devolvido. Minuciosamente restaurado, todo prosa, retoma sua função de nos enfeitiçar.
É terminantemente proibido tentar reprimir as lágrimas.
O menino da porteira continua abrindo as portas à sensibilidade, à cultura, aos sonhos, aos novos talentos dessa nossa terra.
Sejam todos bem-vindos ao Cine São José.
Brotas, 6 de março de 2009
neuza.maria.negrao@gmail.com
Um comentário:
Parab�ns ao cantor. Tb acho que a atitude merece ser copiada, afinal preservar o patrim�nio hist�rico de qualquer cidade no mundo deveria ser uma constante. Temos consciencia de que esses pr�dios representam a identidade de um povo , sua cultura , sua hist�ria. E mesmo que n�o fosse pelo valor hist�rico , ao menos pelo valor comercial , j� que na maioria das vezes s�o pontos turisticos que atraem visitantes para as cidades.
Espero que sirva de exemplo para muitos que a� est�o e podem colaborar.
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